sábado, 22 de outubro de 2011

António Souto – Crónica (41)

Por falar em apardalado, deixo-me levar nas asas do adjectivo para o quintal e para a quinta e para os campos próximos da minha infância onde, com uma atiradeira (uma fisga, para os putos da cidade), o meu irmão e eu caçávamos uns pardais-ladrões…


Em abono da verdade
Um dia destes, de regresso às crónicas de Lobo Antunes, deliciei-me com uma antiga, uma que levou em cima com o título «Crónica escrita depois de ter bebido dois copos de vinho tinto ao almoço». Uma crónica a valer e a condizer com a profusão do enredo, rio sinuoso que não avista nunca a foz, que a crónica tem destas alforrias.
(Convém sublinhar que me regalo sempre com as crónicas de Lobo Antunes, com as primeiras, mais de memórias, com as outras que a seguir são mais de noite nostálgica, com as mais recentes que vão aportando, fotográficas e precisas, e trazem dentro o verdadeiro «sentido íntimo das coisas». Enfim, com todas me contento.)
Mas com esta antiga muito em particular. Porque esta me fez exactamente pensar, pelo desvario, na insânia etilizada que nos invadiu neste treze de Outubro. O sol não cirandou, baixou literalmente ao horizonte e desapareceu, e com ele se sumiram os horizontes de quem ainda acreditava em milagres. Afinal de contas, um prodígio bem ao jeito de uma crónica de uma morte lenta que levará à agonia milhares ou milhões de criaturas, gente séria, cidadãos deste tempo e de tempos vindouros, que o flagelo veio para perdurar.
E há nisto ironia, num destempero que vem de longe, que atravessou séculos, justificou mitos e nos mantém bichos da terra suspensos numa chama toldada que só «a mão do vento» poderá erguer. Poderá?
Porque manda quem pode e obedece quem deve, e toda a gente sabe que é sempre o povo quem deve, o povo todo, não vale a pena o povo lamentar-se (nem lamentar-se o povo), nem esmorecer, nem deprimir, mas dar-se por feliz por ter um país em crise. Um país em crise que pode finalmente desobrigar-se de subsídios de férias e de subsídios de Natal, benefícios completamente desajustados de um calendário de doze meses. Se alguém quisesse que o ano civil tivesse catorze meses a sério teria inventado mais dois nomes a sério para os excedentes, o que não foi o caso. Sempre aprendemos em casa e na escola que o ano vai de Janeiro a Dezembro, e ponto final.
Só que quem pode parece não querer poder a valer, que isto no meu humilde entendimento ou se faz tudo a eito ou fica um travo na boca que arrelia. Bem sei que quem manda não precisa de sugestões alheias, mas não seria mais sensato acabar-se igualmente com as férias e o Natal? É que a fazer fé (e em questões de fé até nem somos maus) no ditado de que quem não tem dinheiro não tem vícios, de uma assentada se abatia mais dois coelhos, e com singeleza se limpava do mapa as férias, agora desnecessárias, e se mandava o Natal de Dezembro às urtigas. De resto, já quase ninguém dá valor às prendas avaras das lojas dos trezentos, isto por um lado, e por outro, que piada tem haver Natal sem iluminação nas ruas ou Natal com bolos-reis sem brinde?
É claro que o povo, o povo todo, é capaz de demorar algum tempo a habituar-se à ideia, e até é capaz de ficar um bocadinho apardalado, mas a crise também não tem pressa e as tristezas, como é público, nunca pagaram dívidas, muito menos as nossas.
Por falar em apardalado, deixo-me levar nas asas do adjectivo para o quintal e para a quinta e para os campos próximos da minha infância onde, com uma atiradeira (uma fisga, para os putos da cidade), o meu irmão e eu caçávamos uns pardais-ladrões que depois, com a cumplicidade da minha avó, assávamos na lareira ou fritávamos no fogão a gás em momentos de gula e de festa.
Saliente-se, em abono da verdade, que na altura não havia dois copos de vinho tinto a acompanhar. Como agora não há, que me mantenho abstémio, mas é como se.

Crónica de Outubro de 2011 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9,   10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 3635; 3738;   39; 40.

1 comentário:

Manuel Cabeleira Gomes disse...

Andamos apardalados, porquê? Os pardais que eu conheço são muito mais manhosos do que os coelhos.