sábado, 2 de julho de 2011

António Souto – Crónica (37)

Este cidadão comum não volta. Vai a um particular, logo ao dobrar da esquina, que por cinquenta e cinco euros o consulta, o ausculta e lhe põe nas mãos uma molhada de receitas para uns examezinhos ao sangue, aos pulmões, à próstata, ao abdómen, à tiróide, ao coração e à paciência. Quando houver resultados, o cidadão comum deve voltar para nova consulta…

Tudo por uma carta
Um cidadão comum abre um jornal e depara-se com a notícia de que há centenas ou milhares de condutores em situação de infracção por não terem revalidado a sua carta de condução. A legislação fora alterada e agora a idade que comanda a validade é outra, que é como quem diz, para as categorias e subcategorias mais baixas, aos cinquenta, aos sessenta, aos sessenta e cinco, aos setenta, aos setenta e dois, aos setenta e quatro, aos setenta e seis e por aí fora, de dois em dois até que a morte os separe…
O cidadão comum dá-se conta de que está quase a cumprir meio século de existência, o primeiro prazo de validade. Desencadeia, por isso, o normal processo que qualquer cidadão zeloso dos seus deveres desencadearia.
Começa então por ir ao médico de família, mas descobre acidentalmente que já não o tem. Agora, só às sete da manhã para receber uma senha para outro doutor, assim tipo de substituição, se houver doutor e se houver senhas suficientes, ou então volta no dia seguinte, ou no outro, ou no outro ainda.
Este cidadão comum não volta. Vai a um particular, logo ao dobrar da esquina, que por cinquenta e cinco euros o consulta, o ausculta e lhe põe nas mãos uma molhada de receitas para uns examezinhos ao sangue, aos pulmões, à próstata, ao abdómen, à tiróide, ao coração e à paciência. Quando houver resultados, o cidadão comum deve voltar para nova consulta, trazer um impresso de uma escola de condução, e estando tudo bem pagará outros cinquenta e cinco euros mais o custo da assinatura no tal impresso atestado ou atestado impresso.
Pouco convencido, o cidadão comum, que há poucos meses fizera exames de rotina, decide tentar a sua sorte e bater a outras portas. Abre-se-lhe uma, e em poucos minutos fica o cidadão atestado por uns míseros quinze euros da sua ainda robustez e da sua necessária capacidade para se desembaraçar na estrada com a habilitação devida.
Passo seguinte, tirar um boneco a cores e em fundo branco, fundamental o fundo branco, e ala para um serviço qualquer que receba o pedido de revalidação e o encaminhe para o Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres.
A afável funcionária verifica que o cidadão comum tem tudo quanto é exigido para o acto – atestado médico, foto a cores e com fundo branco, cartão do cidadão e carta de condução antiga (o pagamento efectua-se no fim), só precisa mesmo é do código do cartão de cidadão. O incrédulo cidadão ainda arrisca um «qual código?», mas é logo tranquilizado, «o da morada, que vem na carta que recebeu para levantar o cartão, não se lembra?». Lembra-se, o cidadão comum lembra-se da carta, só não se lembra do local exacto onde de certeza a guardou religiosamente há uns dois anos. Voltou o cidadão a casa e não encontra o rasto àquela carta assim do género daquela que às vezes nos chega das Finanças, da famigerada Direcção-Geral das Contribuições e Impostos. Regressa o cidadão ao balcão de atendimento de há pouco e fica a saber que sem o código nada feito, e que se calhar terá de renovar o cartão de cidadão.
O cidadão comum liga para o Portal do Cidadão, e do outro lado confirma o pior, que não se emitem segundas vias dos códigos do cartão de cidadão e que o cidadão desmemoriado terá mesmo de renovar a sua identidade.
O cidadão comum investe para uma conservatória e em menos de uma hora (com muita, muita sorte para um cidadão comum) estava medido e fotografado e digitalizado e tranquilizado, que dali a cinco dias úteis receberia uma carta com uns códigos e que já poderia ir levantar o seu novo cartão com chip para mais uns cinco aninhos.
Quanto à nova carta de condução, bom, é ter o cidadão comum confiança no sistema que, como todos sabemos, existe inequivocamente para auxiliar o comum dos cidadãos, que para isso se descobriu o verdadeiro prodígio do simplex. E pelo meio, por via das coisas, ter muita fé em quem manda nos homens e na terra inteira, sem dramas, que afinal o importante é mesmo ter um código na alma.
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Crónica de Junho de 2011 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 36.

1 comentário:

Neta do Paulo disse...

Meu querido, há + um amigo, o Alberto Gonçalves, à tua espera no facebook :-)
Como sempre, "postei" a tua crónica mensal, logo após a publicação e, espero com curiosidade a q se segue. Obrigada!
Beijos desde a Federação Alpina,
Manela