segunda-feira, 28 de março de 2011

António Souto – Crónica (34)

É claro que há coisas piores na vida da humanidade. O quê? Sei lá, um sismo, um tsunami, uma catástrofe nuclear, um conflito armado contra um líder que quer ser líder à força, uma crise política e económica e social aqui mesmo ao lado sem fim anunciado, sei lá…

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Polémica à parte

Há não muito tempo, a imprensa deu conta da anulação de uma tese de doutoramento de uma professora de uma escola superior por, espante-se, plágio. Uma professora-plagiadora, portanto. Reconhecida a inadmissível patranha, fez-se o que deveria ser feito. Há escassas semanas, também, um ministro da Defesa alemão, agora ex-ministro, foi desmascarado pela mesma intrujice. Num caso como noutro, e para além da perda do título, não sabemos das demais consequências, se porventura as houve. No caso português, pelo menos, havendo um compromisso de honra que garante a originalidade dos trabalhos de investigação, os casos de fraude detectados são encaminhados para o Ministério Público para eventual procedimento criminal. O que é grave é que quem tem a obrigação de contrariar estas atitudes – sendo professor ou figura publicamente reconhecida – seja autor destas mesmas atitudes recriminatórias.

Uma das muitas questões que se podem colocar, para além da questão ética, é a de saber quantos pretensos trabalhos científicos não andarão por aí a repetir-se uns aos outros. O delírio de mestrados e doutoramentos é hoje tal, na diversidade como na quantidade, que dificilmente se poderão delimitar as balizas da originalidade e do seu verdadeiro cunho científico. O importante é o título: a emissão do título pelas instituições ‘competentes’, a obtenção do título pelos ‘competentes’ candidatos. Uns e outros em luta pela sobrevivência.

O mal, para quem vê nisto algum mal, parece vir da base, parece medrar de pequenino, de quando se deveria torcer o pepino, de quando se deveria começar a aprender a ser gente e a ser cidadão, de quando se deveria saber o valor dos valores. Porém, do básico ao secundário, e do secundário à universidade, os alunos são discretamente orientados para o facilitismo de um trabalho pouco esforçado, sublinhando-se metodicamente a dimensão lúdica da aprendizagem sem olhar a idades, como se o acto de aprender no decurso do ensino formal se regesse pelos mesmos princípios pedagógicos e pelas mesmas regras da pré-primária aos bancos das universidades. E nisto, a nossa era de novíssimas tecnologias não é alheia à voracidade de querer chegar cada vez mais longe e mais depressa, fazendo-se tábua rasa do proverbial saber de que «depressa e bem não há quem».

Não se leia nestas palavras, contudo, algum conservadorismo nostálgico, nada disso, mas a urgência de cuidar do uso que se faz das insubmissas tecnologias, com a Internet à cabeça. O conhecimento, tão útil à ventura da humanidade, deve ser partilhado e colocado ao serviço de todos, mas não é seguramente aceitável fazer um uso indiscriminado e abusivo da Internet como ferramenta para a apropriação de propriedade intelectual e/ ou artística. O que quero reafirmar é que a escola deve estar na primeira linha na prevenção deste apetite que se inicia na escola e se prolonga fora dela. Primeiro um título, depois uma sinopse, depois uma impressão de leitura, depois uma recensão, depois a obra inteira, depois excertos sobre a obra inteira, depois os excertos todos que interessam sobre todas as obras e todas as reflexões. De um plágio que ainda o não é ao plágio puro que se disfarça vai um pequenino salto, mas um salto que, sendo tolerado, conduzirá a uma única partilha, a do embuste globalizado.

Resta-nos a esperança de que a Internet, hoje utensílio infelizmente facilitador destas tentações por parte de utilizadores despudorados, possa concorrer, também ela, para os desmascarar sem dó nem piedade. Uma esperança.

É claro que há coisas piores na vida da humanidade. O quê? Sei lá, um sismo, um tsunami, uma catástrofe nuclear, um conflito armado contra um líder que quer ser líder à força, uma crise política e económica e social aqui mesmo ao lado sem fim anunciado, sei lá, coisas um bocadinho piores…

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Crónica de Março de 2011 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28; 29; 30; 31; 32; 33.