sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A figueira

À entrada da década de 1980, as notícias dos grandes duelos mundiais de xadrez traziam quase sempre dois nomes associados, Anatoli Karpov e Victor Kortchnoi. Era à volta destes dois mestres soviéticos que tudo parecia girar. Mas um outro nome começava a emergir, também russo, parecido com Karpov mas mais comprido. Garry Kasparov, nascido em 1963 em Baku, capital do actual Arzebaijão (então uma das repúblicas da União Soviética), já se tornara notado no mundo do xadrez. Corajoso, irreverente, agressivo e perfeccionista, Kasparov desafiou Karpov, o campeão mundial, em 1984. A partida durou seis meses, tornando-se a mais longa na história do xadrez. Foi parada pelo presidente da federação internacional da modalidade, que ordenou que se disputasse uma nova partida. Em Novembro de 1985, Kasparov ganhou o denominado rematch contra Karpov e tornou-se campeão mundial. Tinha 22 anos e era o jogador mais novo a consegui-lo.
Passados mais de 20 anos, assisti a uma conferência de Kasparov, no Estoril. Pareceu-me com a mesma coragem, a mesma irreverência, até a mesma agressividade (sobretudo em relação a alguma coisa ou a alguém que a pudesse justificar; por exemplo, Vladimir Putin). Vi-o a falar para quadros de empresas, a falar de estratégias, de tácticas, de inovação, de tudo o que rodeia a tomada de decisão numa organização. Sem perder de vista o xadrez e os seus exemplos para o mundo da gestão, não se esqueceu da sua condição de activista político, comprometido, empenhado em que o seu país conhecesse uma mudança capaz de fazer com que por lá se pudesse respirar plenamente os ares da democracia. E também falou de gurus da gestão, como Peter Drucker; de empreendedores, como Elisha Graves Otis ou William Edward Boeing; e de Thomas Edison, de Winston Churchill, do inevitável Sun Tzu, de nomes grandes do xadrez, de John F. Kennedy e inclusive de Cristóvão Colombo.
Até que na parte final, com alguma surpresa, pelo menos para mim, falou de cinco portugueses. Cinco figuras de épocas tão diferentes como a dos descobrimentos, a da criminosa ditadura salazarista ou a actualidade. Considerou-os a todos notáveis: dois navegadores, Gil Eanes e Vasco da Gama; um militar que se destacou sobretudo como político, Humberto Delgado; um futebolista, Eusébio; e um escritor, José Saramago. O que recordo mais foi o que disse do Nobel português, para ilustrar um dos tópicos que abordou, o da inovação. Não o fez pela opção única de Saramago escrever com uma pontuação bem peculiar, marcada sobretudo pela frugalidade, que permite uma leitura ao ritmo da própria respiração. Fê-lo por algo que para ele também é propício à inovação, à capacidade de inovar: as dificuldades da vida, principalmente aquelas que são experimentadas em criança. Para isso, Kasparov recorreu mesmo a uma frase de Saramago: «As crianças crescem melhor à sombra do que ao sol.» Naquela altura, ouvindo o homem de Baku, lembrei-me de uma outra sombra, absolutamente fantástica, do criador de «Memorial do Convento», a de uma figueira junto da qual, nas tardes de Verão, o rapazito Saramago se deitava muitas vezes, para se proteger do calor. Lembrei-me disso. A mesma figueira que depois, a cada noite, o voltava a acolher; a ele, o rapazito Saramago, que embalado pelas histórias do avô via as estrelas por entre os ramos. Como escreve no discurso de Estocolmo… «No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea…»
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