quinta-feira, 24 de junho de 2010

António Souto – Crónica (25)

Crónica cava
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Pelo meio destes montes e vales, uns «peques» revistos por mor do défice e umas comissões de inquérito que quanto mais inquirem menos concluem. Tudo à portuguesa e com uma Europa ameaçada e ameaçadora. Viva e valha-nos a África do Sul 2010, lenitivo da nossa alma e das nossas mínguas!
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Há crónicas cuja substância consiste em não ter substância nenhuma. Crónicas vazias, cavas, inúteis. Há crónicas que não adiantam nem atrasam. É o caso desta, aparvoada, como aquilo que vai dentro dela. Junho inteiro.
Primeiro, a disforia da crise. A seguir, a euforia do Papa. Depois, de novo, a disforia da crise. Agora, a euforia do futebol! Pelo meio destes montes e vales, uns «peques» revistos por mor do défice e umas comissões de inquérito que quanto mais inquirem menos concluem. Tudo à portuguesa e com uma Europa ameaçada e ameaçadora. Viva e valha-nos a África do Sul 2010, lenitivo da nossa alma e das nossas mínguas!
Mas janelas com tantas bandeiras portuguesas como se viram do menino Jesus por ocasião da visita do Santo Padre, isso não. Não se vêem praticamente nenhumas. Quase nenhumas bandeiras portuguesas desfraldadas por varandas e automóveis, que Scolari não é Queirós e a poesia é bem diferente (como no poema «Desaparecido», do outro Carlos Queirós, poeta, que rezava assim: Sempre que leio nos jornais:/ «De casa de seus pais desapar’ceu...»/ Embora sejam outros os sinais,/ Suponho sempre que sou eu.// Eu, verdadeiramente jovem,/ Que por caminhos meus e naturais,/ Do meu veleiro, que ora os outros movem,/ Pudesse ser o próprio arrais.// Eu, que tentasse errado norte;/ Vencido, embora, por contrário vento,/ Mas desprezasse, consciente e forte,/ O porto do arrependimento.// Eu, que pudesse, enfim, ser eu!/ – Livre o instinto, em vez de coagido./ «De casa de seus pais desapar’ceu...»/ Eu, o feliz desaparecido!).
É verdade, nem bandeiras nem aquelas malfadadas cornetas que lá para os cabos de África têm nome de vuvuzelas. Ou muito poucas, felizmente, que a moda por aqui parece não ter pegado a sério. Que aquelas coisas de plástico, tutti-frutti, para além de cansarem no sopro também cansam nos ouvidos e na paciência. Diz o Cristiano que não gosta lá muito daquilo em campo, e que os seus colegas jogadores também não, que aquele barulho azucrina à brava e desconcentra a táctica, mas que se tem de compreender, que as pessoas gostam e que por isso é preciso respeitar (tá bem, abelha, a lição bem aprendida, é o que é…). Pois, respeite-se então aquele enxame de milhares de abelhas num sobrevoo de noventa minutos, pelos menos não há o risco de ferroadelas, e também para aquilo que habitualmente se ouve em jogo…
Mas se o alarido por enquanto não é muito, já o aparato tem que se lhe diga. Jogadores a sério são jogadores a sério, e se mundiais e «seleccionados» ainda mais, rapaziada de alto gabarito, estrelas do esférico, atletas de primeiríssima apanha que requerem bom remanso e bom trato.
Nada de refugo, nada de atletas de rendimento baixo e de mobilidade reduzida, como aqueles duzentos e cinquenta, de trinta e cinco países, que por aqui estiveram, entre um e nove deste mês, no Campeonato Mundial de Boccia. Sim, que estes não vão a lado nenhum se os não levarem, e isto de serem paralímpicos (e de Portugal ser nesta modalidade campeão do mundo) não quer dizer nada. Competiram em espaços pouco condignos, em condições claramente a condizer, pobres, bem entendido, com escassos apoios e problemas de sobra… «Apesar das boas vontades, nem sempre há sensibilidade para resolver estes problemas. Uma vez por falta de meios financeiros outra porque não se ‘justifica’. Ficam por resolver alguns problemas de acessibilidade, sobretudo nos pavilhões e acessos do Complexo – Estádio Universitário, que esperamos mereçam em futuro próximo a atenção devida», afirma António Batalha, um dos organizadores do campeonato.
Afinal, quase ninguém deu por nada nesta nossa urbe, que desporto e desportistas a sério é outra coisa, não é isto.
Desporto a valer é, como se sabe, futebol de gente viril, apta e capaz de conduzir para cima de 250 cavalos. E por isso aquilo lá para as bandas da Guarda foi o que se viu, assim um estágio tipo-mini-férias, com muito ginásio, spas e mini-spas, muitos autógrafos. Questão de repouso e conforto.
Depois, antes da partida, de Cascais para o aeroporto, batedores e sirenes sempre a abrir. Uma saudação para o Eduardo VII, de costas para o Marquês, e ala que se faz tarde. Uma entrada pela sala VIP e toda a gente dentro do avião, um avião só para ela, pouco mais de meia centena entre jogadores e comitiva, que se quer espaço, muito espaço e, sobretudo, repouso e conforto.
Na África do Sul, ali chegados, um hotel só por conta da selecção portuguesa. Diz-se que o segundo mais caro, que para sofrimento já bastou o nosso quando por lá estivemos e passámos na era de quinhentos. E o campeonato, ainda por cima mundial, exige repouso e conforto (dizem ainda as más-línguas que só os franceses nos bateram em qualidade, e que a própria ministra do Desporto, num acto de incompreensão ou de sovinice, se queixou de tanto desperdício em tempo de magreza – desabafo pouco próprio para uma função ministerial).
Mas que vamos ganhar o campeonato, disso não temos dúvidas, que a boa esperança é nossa desde há séculos. Quer dizer, já ganhámos, só porque lá chegámos e vencemos os tormentos. Quanto ao resto, tanto faz, mais crise menos crise… Haja conforto, conforto e repouso, o necessário para criar anti-heróis e, quem sabe, destruir mitos.
Afinal, há coisas bem piores que também pouco ou nada nos flagelam, como aquela maré negra que invadiu o Golfo do México e anda a importunar as praias do Alabama, do Louisiana e do Mississipi. Coisas das Américas, coisas deles, insignificâncias. Pois que se amanhem agora, que o império é deles e há muito se cumpriu Portugal…
Há crónicas assim.
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Crónica de Junho de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24.
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3 comentários:

Manuel Cabeleira Gomes disse...

Afinal, a crónica sempre tem substância. A ostentação de uns tantos esconde a miséria de muitos.

Anónimo disse...

Só hoje me dei conta de que tenho um amigo escritor no Facebook. Parabéns pelos escritos.
A crônica é sempre um retrato da realidade que se desfolha, palavra a palavra, formando no imaginário do leitor a história por completo. Confesso que não compreendi tudo, já que o seu português, muito bem escrito e rebuscado por sinal, difere em tanto do meu.
Mas nada que comprometa o todo.
Muito bom o seu espaço!
Gostei!
Abraços

António Souto disse...

Luciana,
Creio que deve estar equivocada, mas não tem mal.
A crónica é minha, e eu sou o António Souto.
O blogue (Floresta do Sul) é do António M. Venda. Este, sim, é escritor a sério, como pode verificar na lista de livros que se referenciam no próprio blogue. Se puder, leia alguns deles, que se não arrependerá (como sugestão, e se tiver possibilidade de o adquirir, comece pelo último: «O Sorriso Enigmático do Javali», que é um livro de pequenas histórias apaixonantes).
Quanto à minha crónica, não se preocupe em não a entender completamente, que esse é o propósito desta e de muitas outras crónicas - deixar-lhes uns recantos mais ocultos por entre a ironia...
Abraço (e continue seguindo este espaço)