domingo, 21 de fevereiro de 2010

António Souto – Crónica (21)

Entre dois abalos
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Não há escalas de Richter, ou outras, que meçam a dor da alma.
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1 – «Assim Se Esvai a Vida – Três Livros num Só» (Dom Quixote, Janeiro de 2010), de Urbano Tavares Rodrigues.
É um livro diferente de todos os outros do autor, um livro de memórias arroladas em novela, em reflexões diarísticas com poemas à mistura, em breves contos. Um livro que nos abala e nos faz matutar sobre o sentido da vida, da sua efemeridade, da sua discordância, da sua crueza. Um livro que sabiamente faz a síntese entre o narrador e o autor, um ser com a identidade de Urbano Tavares Rodrigues que por ali se espraia, por aquelas linhas, aqueles versos, e se «expõe» como nunca antes se expusera, ele próprio o afirma.
Três livros num só, num só volume, num só ser, num ser só. Um abandono vagamente resignado a uma mobilidade que deixou de ser, um cansaço físico que a lucidez intelectual tende a contrariar. As palavras não mentem nem negam a incomensurável vontade de criar, e Urbano Tavares Rodrigues sabe-o bem e deixa que ela escorra em trechos de um erotismo a um tempo apetecível e atroz, porque a libido ainda se conserva e insiste – «É sabido que a libido, quer se expanda quer se retenha, está na origem da grande criatividade artística.» Mas está só.
Um ser-só. Um ser paradoxalmente desiludido e esperançoso, um ser que crê – quando tudo (ou quase tudo) o faz desacreditar –, que continua crendo sobretudo no Homem, na sua capacidade de mudança, em nome do Homem. E por isso o amor, a fraternidade e a solidariedade atravessam todo o livro, numa espécie de grito em surdina, como quem busca desesperadamente forças para lutar e se sabe já vencido, como quem sonha em visitar o México e se lamenta: «o que já não poderei fazer por motivos de saúde»(*).
Um ser-só. Um ser que se limita praticamente a contemplar uns olhos que ainda lhe dão luz: «Os olhos verdes do meu filho, da cor do mar a certas horas»(*), um ser que se satisfaz com muito pouco, que é muito: «Brincar com o meu filho António Urbano, com os Gormittis, dragões, dinossauros e Bem».(*)
Um ser-só, num só livro que nos abala e nos destroça, porque «assim se esvai a vida»…
(*) in revista «Única», do «Expresso», 13 de Fevereiro de 2010
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2 – Em Port-au-Prince, a terra tremeu. Diz-se que o sismo foi de magnitude 7.0 na escala de Richter. Não sei o que isso significa, não sabemos felizmente no corpo o que isso significa, mas pelas imagens sabemos o que isso significou e significa para muitos milhares de seres sem culpa. Sabemos não, imaginamos, e mal, que uma coisa é sofrer à hora das notícias e outra, para quantos sobreviveram, para todo o sempre. E não há escalas de Richter ou outras que meçam a dor da alma.
Damos voltas à memória de escola e à dos livros, e o que lemos?
«O sismo teve o epicentro no mar, a oeste do estreito de Gibraltar, atingiu o grau 8,6 na escala de Richter e o abalo mais forte durou sete intermináveis minutos. Por ser Sábado, acorreram mais pessoas às preces. As igrejas tinham os devotos mais madrugadores. Só na igreja da Trindade estavam 400 pessoas. Se os abalos tivessem começado mais tarde, teria havido mais vítimas, pois os aristocratas e burgueses iam à missa das 11 horas. Depois dos abalos, começaram as derrocadas. O Tejo recuou e depois as ondas alterosas tudo destruíram a montante do Terreiro do Paço e não só. Era o fim do mundo!
Os incêndios lavraram por grande parte da cidade durante intermináveis dias. Foram dias de terror. As igrejas do Chiado e os conventos ficaram destruídos. A capital do império viu-se em ruínas, já para não falar de outras zonas do país, como o Algarve, muitíssimo atingida pelo sismo e maremotos subsequentes.»
Em 1755, este foi o cenário em Lisboa, mortes, aos milhares, e ruínas. Houve quem não ficasse alheio a esta «vingança» divina, como Voltaire, e acusasse:
«Filósofos iludidos que bradais ‘Tudo está bem’;/ Acorrei, contemplai estas ruínas malfadadas,/ Escombros, despojos, cinzas desgraçadas,/ Estas mulheres e crianças amontoadas/ Estes membros dispersos sob mármores quebrados/ Cem mil desafortunados que a terra devora (...)/ Direis vós, perante tal amontoado de vítimas:/ ‘Deus vingou-se, a morte é o preço dos seus crimes?’/ Que crime, que falta cometeram estas crianças/ Sobre o seio materno esmagadas e sangrando?/ Lisboa, que já não é, teve ela mais vícios/ Que Londres ou Paris, mergulhadas em delícias?/ Lisboa em ruínas, e dança-se em Paris.»
Em Portugal foi assim. Foi assim no Haiti. Hoje, é verdade, fala-se menos em vingança e a solidariedade é mais ampla, mais pronta, mais eficaz. Mas é a mesma a dor da alma – também nos abala e destroça, porque também «assim se esvai a vida»…
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Crónica de Fevereiro de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20.
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