sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

António Souto – Crónica (20)

Desconsolos
.
Que raio, estas coisas mexem
com a gente, assim tanto dinheiro
à solta há-de vir de algum lado,
ou há-de faltar nalgum outro.
.
Ando desconsolado com a pátria. Alguma coisa não corre bem nesta herança de Henriques o conquistador.
No «mercado de inverno», isto na gíria do desporto, duas equipas portuguesas, apenas duas, espante-se, gastaram em contratações mais de dezassete milhões de euros. O Benfica e o Sporting, num afã de renovar o plantel, não olharam a meios, abriram os cordões à bolsa e venham daí as grandes estrelas do esférico. Diz o presidente do Porto que para já a equipa está bem, que o treinador se sente confortável, que para aquelas bandas não há petróleo. Quer dizer, disse, que acabou agora mesmo de comprar sessenta por cento de um passe por três milhões de euros, e ainda a procissão vai no adro. Que raio, estas coisas mexem com a gente, assim tanto dinheiro à solta há-de vir de algum lado, ou há-de faltar nalgum outro.
Ainda há uns anos, não há muitos, a Segurança Social e o fisco se queixavam das dívidas dos clubes, clubes que pediam desculpa pelos atrasos nos compromissos, clubes que suplicavam por um perdão, por um qualquer santo, por um mateus que veio e perdoou e reduziu as dívidas e os compromissos.
E no entanto o dinheiro sobrava e milagrosamente se multiplicava e continua multiplicando.
E no entanto o dinheiro continua a faltar para uns compromissos e a sobejar para outros.
E os incumprimentos, coisa natural, vão para a justiça, que é lá sempre o seu lugar, que enquanto o pau vai e vem folgam as costas.
E a liga e a federação, sábias na arte de jogar e de driblar, de recurso em recurso, de instância em instância, folgam também agora de alívio pelo milagre das prescrições.
No «mercado de inverno», as faltas não se assinalam nem comprometem a partida. Fiquem tranquilos os adeptos e conformados os contribuintes que quando o desafio acabar de vez, se acabar, não será por faltas, mas por excessos delas, de transgressões, descomedimentos, como o de se mandarem fazer a esmo campos relvados e esmeradas bancadas em nome de um desenfado europeu, quase desígnio.
As câmaras de muitos municípios pugnaram na altura pela grandeza da polis, pela imagem de marca, pela abastança das receitas. E criaram-se empresas municipais para gerir estes enormes complexos, mais complexos do que então se previa.
Hoje, é ver Coimbra e Faro andarem às aranhas com os seus muito seus estádios, poços sem fundo de despesas insuportáveis. Este último, sem gerar quaisquer proventos (e com juros e amortizações de cinco mil euros por dia, custos de manutenção na ordem dos seiscentos euros por dia, despesas com pessoal de cerca de meio milhão de euros por ano), vê-se na eminência de «dispensar» funcionários a breve trecho.
E também é ver Leiria, hoje, a querer livrar-se do seu a qualquer preço.
E o mesmo com Aveiro, hoje também, a imaginá-lo já em escombros.
No «mercado de inverno» parece não haver lugar a conquistas, nem a crises, nem a vergonhas.
Ando desconsolado com a pátria. Alguma coisa não corre bem nesta herança de Diniz o lavrador.
Já o chão queimado perdeu o cheiro a cinza, e na terra despida não há lugar a lavouras, nem a cultivos, nem a nada. As raízes de antanho tornaram-se lendárias e as novas tardam em medrar. Dizem que há projectos e que há dinheiro e que há vontades e um enorme parque florestal ansioso por se ver renovado. E há viveiros apinhados de arvorezinhas prontas a adolescer. Mas não há quem as compre, que falham os fundos abonados pelo Estado e pela Europa. Os fundos existem, é certo, como as pequeninas árvores, mas a burocracia impede-os de serem aplicados em devido tempo, em tempo de vida, e por isso elas morrem, matam-se, destroem-se às centenas, aos milhares (entre elas sobreiros), porque nos viveiros não podem ficar para além de um ano, e normas são normas. A florestação que espere, insignificâncias, que o dinheiro é muito e há-de sobrar sempre, e não pode arder mais o que não existe.
Ando desconsolado com a pátria. Um bocadinho arreliado, só isso.
.
Crónica de Janeiro de 2010 de António Souto para o blog «Floresta do Sul»; crónicas anteriores: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19.
.

Sem comentários: