quarta-feira, 20 de maio de 2009

António Souto – Crónica (12)

Imagem: Blogtailors
Décima segunda crónica de António Souto, depois desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta, desta e desta. O António mantém uma crónica («Ex-abrupto») no jornal da sua terra («Jornal D’Angeja»). Esta é a da edição de Maio de 2009.
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Desconvergências
Domingo, três. Dia da Mãe, pelo menos aqui, neste nosso luso canto desconvergente. Noutras paragens, outras datas, mas o mesmo fim: lembrarmos e homenagearmos quem nos deu (à) luz. Na minha aldeia, quando criança, não havia o hábito destas celebrações, o dia da mãe era todos os dias, com a mãe. Aprendi tarde o sentido de ser mãe num Dia da Mãe; melhor, compreendi-o apenas quando fui pai. Hoje, com as minhas filhas, embarco nestes devaneios consumistas e, acuso, não há rosas que resistam, com ou sem entendimento.
Domingo, três. Fui à feira do livro, em Lisboa, no Parque Eduardo Sétimo. Pouco passava das treze e trinta e fazia um calor de rachar. Logo à chegada, aos primeiros passos, encontro um amigo jornalista, antigo colega de estudos em Aveiro. Trocámos impressões e algum desapontamento pelo ambiente da feira, muito tíbia, pouco animada. Está bem, com barracas novas, mais agradáveis e, aparentemente, mais funcionais, mas nada que se compare com outras feiras congéneres, aqui já ao lado, basta passar a fronteira, tudo adquire nelas outra dimensão e outra atracção. Adiante! Lamechice nossa, que havia que buscar um(a) caixa multibanco para retirar dinheiro para o almoço. Nada, para cima e para baixo e… nada. Afirmou-me um segurança de turno no espaço Leya que este ano não havia ali nenhuma dessas máquinas, mas que sossegasse, os pavilhões da feira estavam preparados para receber com cartão. Meti as mãos ao bolso e, com os trocos que encontrei, sempre alinhámos por duas bifanas e dois cachorros, que éramos quatro. Diga-se, para abono da verdade, que para além de umas farturas e de uns churros, pouco mais havia para satisfação do corpo (do espírito, sim, milhares de livros). Modernices. Como vingança, decidi nesta primeira visita não comprar nada. Limitei-me a regalar a vista nas capas expostas e a tirar uma foto à minha filha mais velha ao lado do meu amigo escritor, e para os amigos, Zé Eduardo (Agualusa), que sendo nós amigos de há largos anos, ambos praticamente com a mesma idade, ambos com dois filhos com praticamente a mesma idade, teimamos em marcar (informalmente) encontro praticamente todos os anos para não nos deslembrarmos. Até ao fim da feira, querendo o destino, voltarei a ela, com alguma massa no bolso para livros e, quem sabe, para um cafezinho com algum amigo que por ali se ache.
Sábado, dezasseis. Regressei à dita, e o que eu demorei para lá chegar, quase duas horas, tudo por causa da repavimentação de uns quantos metros no nó da Buraca (nome pouco decoroso para garantir a união do IC19 à Segunda Circular). Às dezassete, a Feira fervilhava, gente para baixo e para cima, a impressão era de festa. Cheguei ainda a tempo de desencantar para um café o António Manuel Venda, que autografava, de abraçar o João de Melo, que autografava, de voltar a saudar o Agualusa, que autografava, e de divisar muitos outros escritores que, como aqueles, autografavam também, de um António Lobo Antunes a uma Júlia Pinheiro, que estes lugares têm destes extremos. Desta vez, antes de abandonar o recinto, esbanjei uns euritos para, saciando a fome, trazer um bom punhado de palavras com título. Como um culto.
Sábado, dezasseis. Feira na alta Lisboa, festa na baixa (a mesma etimologia, dissemelhante o sentido). Festa amainada, porém, no Terreiro do Paço, por respeito a Nossa Senhora de Fátima, que de Fátima viera, em imagem, para abraçar pela segunda vez o desterrado filho-Rei, em betão. Grande ajuntamento e fervorosa oração, antes que se fizesse Ela ao Tejo para as grandes e transitórias honras no sopé do monumento almadense. Crenças e devoções.
Sábado, dezasseis, ainda. Em Almada mora um colega e amigo meu. Foi há poucos dias operado à cabeça, no privado. Coisa delicada. Mandaram-no para casa ao fim de cinco dias (!), para recuperar. Estava a recuperar, em casa, em Almada. Regressou de urgência ao hospital, com uma hemorragia, para nova intervenção. Ficou em coma induzido. Enquanto o assistiam, cantavam-se louvores à Virgem, em Almada. Parece que de sua casa ao santuário vai o passo de uma Avé-Maria ou de um Padre-Nosso. Em Almada, aos pés do Cristo-Rei. Descrenças e desvoções. Nossas.
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