quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Uma crónica do Luís Graça (4)

Quarta de uma série de crónicas do Luís Graça. A primeira pode ser lida aqui, a segunda aqui e a terceira aqui.

Os matraquilhos e a eternidade
Não há tecnologia que consiga perturbar a noção de eternidade que uma mesa de matraquilhos implica. Os matraquilhos existem porque são a representação perfeita da competição. Mesmo quem não gosta de futebol aprecia um bom jogo de matraquilhos, vulgo «matrecos», ou «bonecos».
Poder-se-á pensar que os matraquilhos rimam com tasca, copos de tinto a granel e jogos de bisca lambida. Nada mais errado. Os matraquilhos rimam com tudo isso, mas são também fonte de deleite nos corredores austeros de uma universidade ou em casa faustosa de «jet-set». Os matraquilhos, enquanto reprodução do futebol, causam unanimidade.
Os matraquilhos são uma espécie de pinturas rupestres. Traduzem a pré-história do futebol de mesa, mas ao mesmo tempo possuem um espírito fraterno que eleva o ser humano ao êxtase mais profundo. Que se saiba, nunca um credo religioso, filosófico ou político se pronunciou contra os matraquilhos. Nunca se descortinaram efeitos perversos para a saúde numa partida de matraquilhos. Jocosamente, diz-se mesmo que desenvolvem a acuidade visual, os reflexos e a coordenação motora. Ao mesmo tempo que modelam os bíceps.
Os fundamentalistas esquecem, no entanto, que os matraquilhos provocam calos na palma das mãos e que são extremamente ruidosos. Mas é para isso mesmo que servem os matraquilhos: para afirmar a virilidade do Ser, mesmo que toda a gente ache muito bem que as senhoras pratiquem este desporto/ jogo de mesa.
Os matraquilhos também fazem transpirar das axilas, mas é para isso mesmo que servem: para que as glândulas sudoríparas gritem a viva voz a alegria de se expressarem livremente. Um jogo de matraquilhos que não misture sabiamente os odores do Paco Rabanne com as fragrâncias do suor das sete da tarde não merece ser cognominado de matraquilhos. Será algo aproximado, mas falso.
Claro que é irritante ter as mãos sujas de óleo dos matraquilhos. Nesse sentido, é mais um jogo para mecânicos do que para cirurgiões; mais uma actividade para culturistas do que para engenheiros informáticos, mais um passatempo para moçoila comprometida com o cultivo do campo do que para uma esteticista/ nutricionista. Não nos esqueçamos, todavia, da questão subsidiária: para que serve a pedra-pomes? As mãos podem conspurcar-se, mas é muito mais importante ter a alma limpa. Esta poderia ser mesmo a divisa de todos os matraquilhistas: «Mãos sujas, alma limpa».
Que crédito nos poderá merecer um jogador sem calos, os dedos imaculados, a expressão apática de um ente sem paixões de qualquer espécie? O verdadeiro atleta dos matraquilhos (atleta, sim, porque aos matraquilhos não se joga sentado) revela no olhar o espírito predador da águia, o calculismo de um xadrezista sem pudor, a malícia de um lince com hienas na família, a astúcia de um felino em ninho de cucos.
Os matraquilhos são mais do que um jogo, são um estado de alma. Naqueles quatro varões joga-se o destino da Humanidade. Aprende-se de um fôlego as regras da confraternização e da sobrevivência: bola na defesa, é preciso levantar os pezinhos dos médios e avançados; bola do outro lado, urge ter o guarda-redes desencontrado com os dois defesas.
Tacticamente, os matraquilhos são como a vida: atrás, um guarda-redes desamparado (as surpresas que o destino nos revela); à sua frente, um par de defesas cheios de responsabilidade e frequentemente desapoiados (as traições); no meio-campo, cinco homens lado-a-lado, prontos para o que der e vier (a luta quotidiana pelo pãozinho); à frente, três heróis de peito feito às balas, aptos para recolher os louros da vitória (e muitas vezes não sabem parar uma bola vinda dos defesas).
Quando a bola pára nos pés da linha avançada, não nos podemos impedir de pensar: chegou a hora. Porém, nem todos os avançados são bafejados com a perícia que transforma uma bola parada num golo inevitável, num «ballet» perverso que dura uma fracção de segundo e consegue criar no feliz concretizador a ilusão de ser um D. Juan das balizas.
Os matraquilhos são uma arte clemente: nunca ninguém foi parar a um divã de psicanalista por não ter jeito para os matraquilhos. É uma coisa que se aceita com a mesma afabilidade de um pôr-do-sol. E nunca nenhum «nabo» recolheu um abaixo-assinado para acabar com os matraquilhos. Eles são imunes a jogos de computador, Segas, Playstation, Stationwagon, monovolumes, pastilhas elásticas e acid jazz.
Senhores e senhoras, os matraquilhos são eternos.
Com os varões empenados, com as pernas da mesa desequilibradas e cheias de caruncho, com as salas sem luz, com o tabaco em valsas loucas a rodopiar nos salões, com o vernáculo empenhado de dançarina de cabaret apaixonada pelo tratador de elefantes do circo de Natal, com tudo isto e tudo o mais que se dignem imaginar, os matraquilhos são mesmo eternos.
A única coisa estranha é não ter havido ainda uma tese de doutoramento intitulada «A influência dos matraquilhos no desenvolvimento motor da criança». Ou um Action Man a jogar matraquilhos, enquanto a Barbie dá banho aos putos.
Aposto que nunca tinham pensado nisto.
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