quinta-feira, 13 de março de 2008

Um conto

Um conto com que há alguns anos, em 2002, participei num livro editado por este grupo. O livro chama-se «As Segundas Palavras da Tribo»; a imagem é de uma das apresentações, no Bairro Alto, em Lisboa (livraria Ler Devagar).

Os terríveis baixinhos de olhos de pirilampo
Não sabia como tinha ido lá parar. Nem por quê. Nunca ninguém sabe. Pensava que me tinham levado, dois ou três dos que costumam vigiar-me à distância, dos que me gritam que mais dia menos dia alguma coisa acontecerá. Mesmo assim, não me lembro de terem chegado ao pé de mim... Nem sei como terão conseguido dominar-me. Três deles, a dar-me pelo ombro, três dos que sempre me avisam... Talvez tenham sido mais, talvez, porque com três eu haveria de poder bem. Sim, três apenas nunca chegariam perto. Vê-se que têm medo de mim, como de muita gente por aí. Mas eles avisavam-me, os que sempre me vigiam, avisam-nos, avisam muita gente, com a gritaria, e com os olhares, com os olhos amarelos-esverdeados de pirilampo. Quantas vezes não pensei que se preparavam para me fulminar?
Sim, devem ter sido mais do que três. Não tenho nenhum galo na cabeça, nem sinto cheiros esquisitos no nariz. Eu nem sei se eles usam disso, se intoxicam as pessoas. Bater sei que batem, mas não tenho nenhum galo na cabeça.
Da próxima vez que encontrar alguns, provavelmente os dois ou três do costume, atiro-me a eles, mesmo correndo o risco de aparecerem logo uns dez a acudir. Vá lá que não formam à dezena, que andam só aos dois e aos três. Depois é que se juntam, quando sentem o perigo. São pequeninos, baixinhos, mas bem danados. De contrário, não teriam chegado a dominar isto. Por que é que será que toleram escritores? Será que não lhes lêem os livros? Por que é que será que a esses só os levam de vez em quando? Ainda vão passar à história, os escritores, obviamente, como privilegiados; pior, como colaboracionistas. Um equívoco, como tantos outros da história... Ainda eu passo à história assim, e não como escritor e até, em tempos idos, de abertura de fronteiras, de nome falado para o Nobel. O escritor das bruxas, se bem que bruxas de inspiração regionalista, talvez capaz de ganhar o Nobel lá para 2009, mas só depois do vizinho espanhol também muito falado, o tal de apelido de nome próprio de mulher mas no plural, o Marías, quase com idade para ser meu pai. Haveria de ser bonito, o Marías, se em Espanha tivesse chegado um regime como este dos baixinhos. Não, os espanhóis não tolerariam baixinhos no poder; já lhes bastou o filho da puta do Franco, que além de baixinho era gordo que nem um porco cevão, antes de mirrar, quando foi para velho. Pois, muitos espanhóis haveriam de dizer isto, até o Marías, que o mais certo era com baixinhos a mandar perder logo as ilusões do Nobel.
E nós, cá, agora, com os baixinhos a mandarem nisto... Antes o Salazar, diz-se pelas esquinas mais resguardadas, antes o Salazar ou, se não fosse pedir muito, o Cavaco, que era do género mas tinha a vantagem de não ter a polícia política. Os outros que apareceram depois é que não, os da rebaldaria; por causa desses, se calhar por causa das rebaldarias desses todos, anos e anos, é que os baixinhos tomaram conta disto. Impressionaram a populaça com os olhos reluzentes, à pirilampo, os cabrões... De onde é que eles terão saído, ainda por cima tantos? Montes deles, sempre com a mania de terem tudo ordenadinho, o trânsito, os hipermercados, os impostos, os serviços de saúde, as conversas de rua; e baixinho, baixinho, fale-se baixinho, como os baixinhos estão sempre a pedir, se calhar porque têm ouvidos sensíveis...
Bom, por que é que fui lá parar eu não sabia. Pensava até que teria sido pelo que escrevi no meu último livro... Mas esse já tem uns bons anos. Não escrevo daí para cá, de há uns bons anos para cá... As comissões de olhares e estudos dos baixinhos já o conhecem de uma ponta a outra, palavra a palavra, frase a frase, capítulo a capítulo, os minuciosos dos baixinhos... Pois, não podia ser isso, pensava eu... Seria por terem-me visto em politiquices, por alguém me ter denunciado? Mas eu não me meto em nada...
Malditos baixinhos!, cheguei a dizer, só para mim.
De repente, uma porta do gabinete abriu-se e entrou o presidente. Que mau-cheiro!... Eu não sabia que o cabrão cheirava assim, ainda pior do que os outros. Deve ser um sinal de distinção... Só o tinha visto na televisão, e a televisão, apesar das maravilhas da técnica que se ouve sussurrar do exterior – os baixinhos não deixam cá entrar nada disso –, a nossa, a nossa televisão, ainda não tem essas novidades, não transmite o cheiro; e lá fora, se calhar, isso consegue-se mas é em diferido, sem acompanhar a imagem, o que deve dar confusão... Mas o cabrão do presidente, o de quatro olhos, dois de luz de pirilampo e dois postiços de pisca-pisca, o cabrão disse-me que me iam propor à academia como candidato ao Nobel, que daí a três anos, daqui a três anos... Disse-me que pensavam candidatar-me... O escritor das bruxas de inspiração regionalista, que sim, que talvez fosse bom para a imagem disto lá fora, disse-me... Vamos propô-lo daqui a três anos, tem-se portado bem, ia ele repetindo.
Mas eu não tenho escrito nada, argumentei. Pois, por isso mesmo, vamos propô-lo. E eu, atrapalhado. Mas, senhor presidente, eu não sou baixinho como os senhores, faço parte da minoria silenciosa, além de que se formos a ver só pela altura tenho um metro e oitenta e cinco, embora nos papéis de identificação tenha um metro e oitenta e dois, porque pensaram que eu estava de botas de sola grossa e deram um desconto, e eu afinal estava descalço, tinha-me descalçado quando foi para me medirem. Não serviu de nada a minha argumentação. Corrigiremos a sua altura, disse o filho da puta, numa próxima revisão do normativo interno e dos dados sectoriais. Está bem, senhor presidente, respondi. E acrescentei, Mas aquilo do Nobel, eu... Ele estava decidido. Queremos apresentar um escritor que não seja de nós. E eu, Mas repito, senhor presidente, eu não tenho escrito nada. Mas vai escrever, disse ele, vai escrever...

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