quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Uma perspectiva sobre o romance «O que Entra nos Livros»

Coloco abaixo o texto de suporte da intervenção do Prof. José Vilhena Mesquita, da Universidade do Algarve, na apresentação do meu romance «O que Entra nos Livros» (29.09.07, em Monchique).

Aquilo que verdadeiramente entra no livro de António Manuel Venda
Por José Carlos Vilhena Mesquita
A primeira questão que se sobrepôs à leitura deste livro de António Manuel Venda foi precisamente a mais elementar, isto é, a de saber se efectivamente estava, ou não, perante um romance na verdadeira acepção da palavra, e do teórico conceito que lhe é inerente. O trago de dúvida com que fiquei no final da sua leitura obriga-me a definir os termos e os conceitos em que me exprimo. Um pouco à laia de Voltaire, urge pois aclarar os conceitos com que nos expressamos para que a sintonia das palavras não se disperse na confusão ou no calor da discussão.
Comecemos por definir a palavra «romance», para perceber sem mais delongas aquilo que traduz o seu conceito. A palavra, na sua nudez original, deriva do étimo latino romanice, do qual descende romanicus, que significa, em latim popular, uma narrativa, verdadeira ou imaginária, escrita em prosa ou verso, repartida por cenas, quadros ou capítulos, pejados de pormenores e longas descrições, cuja acção se desenrola através de várias personagens, de entre as quais só algumas assumem o protagonismo de se tornarem no centro da diegese. Isto no que concerne à palavra.
Porém, no que incumbe ao conceito de romance, importa dizer que só muito tardiamente é que o mesmo foi equacionado, numa perspectiva mais simples, mais sintetizada, mas não menos abrangente. Com efeito, só no declinar do século XVIII é que se definiu o romance como «uma narração em prosa de uma acção fictícia que tem por quadro a pintura de costumes». Dito desta forma não há nada mais simples, nem menos directo. E sendo assim, a obra «O que Entra nos Livros», de António Manuel Venda, integra-se inquestionavelmente, tanto no conceito como na palavra, na correcta designação de romance. Não unicamente de «costumes» – porque isso está fora de moda e qualquer dia nem existe –, mas de um maravilhoso fantástico, a que mais adiante me referirei com relativa acuidade.
Ao longo da História da Literatura Portuguesa publicaram-se diversos tipos de romances: históricos (Romantismo); sócio-moralistas (Naturalismo), ético-científicos (Realismo); político-revolucionários (Neorealismo); anti-dogmáticos e universalistas (Modernismo) psico-surrealistas (Pós-Modernismo); e outros que nem sei até como qualificá-los. Em todos estes modelos de criação ficcionista o que está em causa são os costumes das sociedades humanas no tempo e no espaço, numa espécie de simbiose, ou de intercepção espacial, entre a História e a Sociologia.
Ora acontece que o romance «O que Entra nos Livros», afasta-se de todos estes modelos classificativos, ou de todas os movimentos literários que acabei de enunciar sumariamente, muito embora o seu discurso narrativo se integre naquilo a que chamo o «modernismo milenarista». Isto é, na tentativa de criação artística através do pictorismo ficcionista da palavra, ascendendo a patamares supra-fantasistas, que rapidamente se transformam numa diegese fantástica, surreal, imateral e anti-ascética. Nada de novo, diria, se com isso não se cortassem definitiva e diametralmente os cânones da ficção dominante. O paradigma romancista, na sua feição soberana e imperante, preocupa-se com a construção de grandes quadros sociais, ao longo dos quais o autor vai fazendo uma descrição evolutiva dos interesses percepcionais e dos seus consequentes jogos de poder, assim como das virtudes e dos defeitos dos protagonistas, dos assimilados ou dos desintegrados numa sociedade enquistada nos defeituosos costumes do individualismo social. O romancista torna-se assim num crítico e num psicanalista da sociedade, no que isso tem de mais contraditório e de paradoxal, usando geralmente o amor e as relações laborais nas suas conexões e correspondências com as intrigas que vulcanizam os diversos poderes em que se reparte a vida real. O romancista é, em suma, um ficcionista do real.
No caso presente, a natural bonomia de António Manuel Venda, a sua candura bucólica, a sua inocência e pureza de carácter, insuflada de um certo torpor algarviista, influenciou decisivamente a sua inspiração e consequente criação artístico-literária, visivelmente enraizada nos telúricos vergéis da sua saudável Monchique, onde os romanos procuravam a cura para os seus achaques através do princípio natural da água, ou seja, o termalismo, modernamente designado por SPA, sigla romana que se traduz por «salute per aqua».
Neste livro, como aliás, em quase todos os outros da sua lavra, a terra-natal, o Algarve e a peneplanície alentejana, que lhe serve hoje de residência e de ninho conjugal, estão presentes com uma insistente acuidade, e até por vezes com inusitado protagonismo. O mesmo acontece com as reminiscências da sua infância e juventude, aqui e ali afloradas, num contrastante quadro dos sentidos, entre a fresca e verdejante montanha e as estivais praias do barlavento algarvio. Essa enriquecedora vivência, a que certamente se conjugaria uma marcante e muito atenta convivência social, serviu-lhe, e provavelmente ainda lhe servirá, para povoar de vida os seus romances, os seus contos e as suas novelas, cujo inquestionável talento, e insofismável sucesso literário, enobrece hoje não só a literatura portuguesa como, muito particularmente, o seu e nosso Algarve.
Relativamente ao estilo, à concepção narrativa deste livro, direi que impera na estruturalização dos seus capítulos uma insistente, e consistente, preocupação realista da envolvente descritiva, através do recurso ao enquadramento paisagístico em que decorre a diegese. A descrição de aves e animais que abundam no montado onde reside, dos pormenores sobre a flora alentejana e sobre o parco coberto florestal, a contrastar com a sua Monchique originária, é uma constante neste romance. A descrição das estradas por onde circula, com as alarmantes brigadas de trânsito (que por insistência descritiva acabam por o interceptar quase no final do livro), assim como as pessoas que na berma da estrada, nos largos e jardins das aldeias, aguardam serenamente o decurso dos seus dias, numa entediante monotonia. Apesar de aqui e ali depararmos com uma certa acintosidade crítica, contra a ditadura salazarista, mas também contra os políticos actuais, a que não escapam os autarcas, o certo é que a acção do romance decorre de forma lenta e parcimoniosa, à imagem do clima mental, mas também socioeconómico, que se vive nas terras sulinas. Mesmo com essa aparente lentidão, desse torpor ao Sul, a minha atenção de leitor (ainda que pouco disponível para a ficção literária) não se conseguiu despegar das páginas que se iam sucedendo, envoltas no crescente mistério da fantasia que paira por detrás das palavras.
O autor, na sua prodigiosa imaginação, assume-se, quase despudoradamente, como personagem principal, como confidente do leitor, e por vezes como um cavaqueador tertuliano, do qual não nos podemos divorciar. Num estilo pós-moderno, António Manuel Venda encanta-nos com a fantasia dum «mágico velhinho», figura levemente fantástica, duma bonomia desarmante e quase infantil, muito invulgar por causa dessa inofensividade, contrária à agressividade das personagens surreais que caracterizam este género de literatura.
Acima de tudo, o livro está primorosamente bem escrito, escorreito na linguagem e absolutamente correcto na estrutura frásica e na concordância gramatical, em que por vezes o autor se coloca, diegeticamente, com pruridos de perfeccionista. Numa visão sintética e desconstrucionista da concepção narrativa, eu diria que este livro é uma espécie de alegoria aos Livros e ao Mundo da Escrita, cuja acção se desenvolve num quase monólogo entre o autor e o leitor. Numa estratégia modelarmente concebida, a atenção do leitor é constante e abruptamente interrompida pela desconcertante forma como se encerram os capítulos, deixando-lhe um trago de insaciável curiosidade. Desse estratagema narrativo resulta uma inebriante concentração do leitor na sucessão diegética das páginas, que o leva sempre por diante na progressiva sucessão dos capítulos.
Falando, ainda mais concretamente, deste livro, parece-me que, em primeiro lugar, dele ressalta a surpresa do título: «O que Entra nos Livros». Assim, de repente, apetece-me dizer que o que está dentro deste livro mais não é do que a própria alma do autor, consubstanciada no seu talento e na sua genialidade, eufemisticamente identificada na figura do «mágico velhinho». Acima de tudo, o que está dentro deste livro é a rara e mui singular capacidade imaginativo-fantasista de António Manuel Venda.
Curiosamente, ao contrário do que seria normal e expectável, este livro não se distancia dos anteriores; bem pelo contrário, engasta-se no romance que o antecede, intitulado «O Medo Longe de Ti». Não é a sua continuação, como se de uma saga se tratasse, mas antes de um romance de anamnese, em que uma das figuras secundárias e quase inócuas do livro anterior passou, ou saltou qual malabarista, para o livro seguinte, como se tivesse vida própria, ou, talvez mais concretamente, como se já existisse antes de ser inventado. É a figura do «mágico velhinho», uma criatura inventada pelo autor, inocentemente inspirado em «Branca de Neve e os Sete Anões», obviamente uma reminiscência da infância, modelado pela sua imaginação no aspecto físico do Dunga, mas com o carácter e os trejeitos do Zangado.
Tudo aparentemente infantil e inocente, mas que no decurso da narrativa se transforma numa misteriosa errância psicanalítica, pejada duma envolvência fantasista e quase fastasmática, geradora dum clima enigmático, nebuloso e enleante. O misterioso e insondável «mágico velhinho» vagueava pelos livros, saindo de um e entrando noutro, numa irrequieta odisseia entre autores de diversos quadrantes culturais, aparentemente desconexa e sem qualquer critério, mas que, ao fim e ao cabo, revelava ou estava intimamente relacionada com as preferências literárias do próprio António Manuel Venda. Em certo sentido, o «mágico velhinho» constitui a personificação do espírito errante e irreverente do próprio autor.
Mas o mais desconcertante neste romance é o facto de ser apenas constituído por duas personagens, mais essa omnisciente figura do «mágico velhinho». Em boa verdade, na intercepção dos diferentes estratos narrativos, estão apenas duas personagens, o Autor, especificamente identificado, e o Livreiro, um tal Sapinho Júnior, proprietário duma livraria em Évora, que numa simples carta indagava o «caríssimo escritor» sobre os verdadeiros traços fisionómicos do «mágico velhinho». Esta missiva funciona como rastilho para despoletar todo o romance em torno de uma absoluta ficção: o «mágico velhinho», esse pressuposto duende ou gnomo, híbrida figura inspirada no Dunga, um anão do humor infantil, que talvez por humildade do autor nunca poderia transformar-se num Mago Merlin da Corte do Rei Artur.
O certo é que em torno do «mágico velhinho» nasce, cresce e se desenvolve um belo romance, uma apaixonante história de fantasia e de mistério, que absorve e confunde a atenção do leitor, transformando-se numa espécie de romance policial, sem violência, sem sangue e sem criminosos.
Perante tudo isto, coloca-se-me, porém, e a priori, esta pertinente questão: terão os livros vida própria, e, por isso, a faculdade de gerarem descendência? Terão as personagens de ficção a possibilidade de se tornarem reais e de se independentizarem do berço/ livro em que nasceram? Lendo atentamente «O que Entra nos Livros» somos levados a crer que sim, os livros reproduzem-se e as personagens podem fugir deles para virem connosco passear por entre as nossas vidas.

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