sábado, 6 de outubro de 2007

Textos sobre livros - 40

«Terra Papagalli», de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta (Quetzal Editores, 181 pp.)

Na terra dos papagaios

As aventuras e as desventuras do português Cosme Fernandes na «Terra dos Papagaios». Um romance notável, de dois autores brasileiros que a seguir escreveram um outro, que mete uma alface, um verme e um político (o político engole o verme).

«Chegámos ao Tejo pela manhã. Antes de embarcar, olhava para os lados na esperança de encontrar Lianor, causa e remédio das minhas tristezas. E quando estávamos a um tiro de besta da nau, não sei se por efeito da muita tristeza ou da fome, olhei para o céu e vi que as nuvens tomavam a forma do seu perfeito rosto, que apareceu sorrindo para mim./ Aquela visão da minha senhora, assim tão digna e bela, pôs-me num estado de tamanha sandice que desatei a chorar e a dar murros na cabeça e braços, e então, reunindo todas as minhas forças, olhei para o céu e arranquei do peito o mais potente grito que jamais dei em minha vida:/ – Espera-me que eu me guardarei para ti! – mas quando pensava que ia ouvir sua maravilhosa voz respondendo lá do céu: ‘Também eu me guardarei, meu adorado!’, ouvi apenas a de um soldado inclemente que disse: ‘Anda, bode judeu!’, e deu-me com um pau nas costas./ Foram essas as últimas palavras que ouvi em terras portuguesas antes de entrar nesta nau que vai comandada por Pedro Álvares Cabral, fidalgo que jamais capitaneou um barco mas que está a comandar a maior esquadra já reunida em todos os tempos, com treze naves muitíssimo bem-armadas. Puseram-me num canto da embarcação juntamente com Lopo de Pina e outros vinte condenados que eu não conhecia./ Partimos então de Belém com bom tempo e mar tranquilo. A grande cidade de Lisboa foi-se apequenando à nossa vista até desaparecer, ficando só os cumes da serra de Sintra e a grande cópia de caravelas, navios, barcas, batéis, galeões, almadias, bergantins e fustas que se amontoavam na ribeira./ Mas isso tudo se foi e neste instante só estamos a ver águas e céu.»
***
Isto escreveu Cosme Fernandes no seu diário, no dia nove de Março de mil e quinhentos. Um diário que se viu forçado a terminar nem dois meses depois, a um de Maio, já em Terras de Vera Cruz, por ordem do próprio Pedro Álvares Cabral.
De qualquer forma, não é por falta de diário que ficamos sem saber o destino de Cosme Fernandes, um cristão-novo apaixonado por uma donzela da alta sociedade portuguesa, de seu nome Lianor. E que por essa paixão se viu condenado ao exílio no Novo Mundo. As aventuras de Cosme Fernandes continuam até ao final de «Terra Papagalli» (a imagem é da capa da edição brasileira), um romance de José Roberto Torero (escritor e realizador) e Marcus Aurelius Pimenta (jornalista e guionista), ambos brasileiros. Já agora, de referir que os dois escreveram logo a seguir um romance chamado «Os Vermes», onde juntam uma folha de alface, um verme e um político, que acaba por engolir o verme (e de repente este vê-se num ambiente totalmente desconhecido, o organismo humano, ou, pior ainda, o organismo de um candidato em campanha numa capital federal do Brasil).
Mas voltando a «Terra Papagalli», trata-se de um retrato mordaz do Brasil do século XVI. Um mergulho nos tempos da chegada dos portugueses, através da narração do referido Cosme Fernandes, dito «Bacharel», que terá sido um dos degredados esquecidos do primeiro desembarque na «Terra dos Papagaios».
E Cosme Fernandes tem muito para contar sobre o que viveu do outro lado do Atlântico. E sobre o que aprendeu, principalmente os dez mandamentos para sobreviver em terras tão selvagens. A título de curiosidade, aqui fica o último: «Naquela terra de fomes tantas e lei tão pouca, quem não come é comido.»
Talvez por isso Cosme Fernandes andasse sempre de olhos bem abertos e de pé atrás. E admirasse Santo Ernulfo, que disse que «os erros são tragédias para quem os comete e comédia para quem deles ouve falar». Lá saberia por quê.

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