domingo, 29 de julho de 2007

Os meus diálogos – 3

(de «Os Sonhos e Outras Perigosas Embirrações», 2000)

(…)
Nunca, durante anos a fio, a GNR conseguiu nada de jeito com a velha Luzia dos Engreneiros. Por mais que os guardas a chamassem à razão, por mais que tentassem fazer-lhe ver o caminho certo, ela nem lhes ligava. Ia com eles para o posto, sempre a lançar-lhes os esconjuros do costume, só que em menos de meia-dúzia de dias estava de volta e pronta para novos cometimentos. Até que eles se cansaram.
- Como é que a velha Luzia dos Engreneiros nunca transformou nenhum guarda num burro, isso é que eu nunca hei-de perceber.
- Olhe, se calhar até era um bem de caridade aqui para a gente.
- O quê?! Um guarda a menos?!
- Não, um burro a mais.
Os problemas começaram há muito tempo, quando a acusaram pela primeira vez de bruxarias. Eu ainda não era nascido nessa altura, e ela mesmo assim já era velha. Já andava de corpo curvado e toda vestida de preto, e também com o nariz postiço que trazia os óculos incluídos. Parece até que depois de lhe terem chegado as rugas maiores e os cabelos brancos se deixou ficar no mesmo estado de velhice, provavelmente à espera do fim do mundo que de vez em quando alguém se encarregava de lhe anunciar, mesmo sem citar a fonte. Tanto que não foi o passar dos anos que a impediu de dar a grande lição que deu ao Mau Serviço, nem a impede ainda agora de ir pescar para cima da rocha que fica perto da falésia de onde eu, carinho, consigo ver-te. Tão-pouco a impede de fazer frente ao fantasma do lagarto das Cimalhas, sempre que ele se mete a subir às árvores que nem um maluco só para caçar pássaros.
- Na altura em que a acusaram, menino, e mesmo depois, as coisas nunca ficaram lá muito claras. O meu pai, que é quem se lembra bem disso, conta que houve uma vizinha da velha Luzia dos Engreneiros que um dia disse que ela era bruxa.
- Disse por aí, ou apresentou queixa?
- As duas coisas, menino, as duas coisas. Disse a toda a gente e apresentou queixa no posto da GNR. Assim sem mais nem menos, queixou-se de que lhe tinha nascido um filho sem nariz. Para que não houvesse dúvidas, fez prova provada com o pobre bebé.
- Não me diga?!
- Digo! Digo! E o que é certo é que ninguém lhe tirava da ideia que a causa de tudo tinha sido uma infusão que a velha Luzia dos Engreneiros lhe tinha dado para evitar as dores de parto. Já no julgamento, uma testemunha disse que tudo não passou de uma vingança da velha Luzia dos Engreneiros, e isso por uma vez o pai, pelo menos aquele que toda a gente tinha ideia que era o pai do recém-nascido, por uma vez o pai, dizia eu cá ao menino, se ter saído com umas piadas a respeito do nariz que a explosão tinha levado.
- O nariz da velha Luzia dos Engreneiros?!
- Sim, menino, o nariz que ela perdeu quando lhe explodiu um cozido na cara! Mas como eu cá lhe ia contando, foi nas palavras dessa testemunha que o juiz pôs fé. E acabou por condenar a ré a seis meses de pena suspensa, e isso, segundo afirmou, porque as provas não eram lá muito fortes.
No final da audiência, quando já toda a gente se preparava para abandonar a sala do tribunal de Monchique, o juiz ainda perguntou à velha Luzia dos Engreneiros se ela tinha alguma declaração a fazer. E a velha Luzia dos Engreneiros disse-lhe:
- Vá à merda, senhor doutor juiz!
Desse crime é que não se safou. Mas como o juiz até nem era má pessoa, pelo menos segundo algumas opiniões, condenou-a só a vinte dias de prisão, remíveis a uma determinada quantia diária. Só que a velha Luzia dos Engreneiros, além de não ter nariz...
- A velha Luzia dos Engreneiros tinha nariz, e isso é uma coisa que é preciso deixar bem clara. Só que era um nariz postiço, dos de carnaval.
... além de não ter nariz, não tinha dinheiro para pagar, e assim acabou mesmo por ir bater com os ossos na prisão.
- Foi algemada para o posto, o raio da velha.
- Algemada?!
- Algemada e com um guarda de cada lado, que fica sempre bem. Mas ao fim de quatro ou cinco dias parece que se fartou daquilo. Dizia o carcereiro...
- O que sucedeu ao Leopardo?!
- Exactamente, o que veio depois desse labrego. Dizia ele, antes de morrer, que a velha Luzia dos Engreneiros não gostava muito de lá estar, e que foi por isso que fugiu. Os guardas ainda se meteram à procura da amaldiçoada durante uns tempos, mas era melhor terem ficado quietos, porque não serviu de nada.
- Assim, pelo que me está a dizer, deduzo que ela não cumpriu a pena toda?!
- Quer dizer, não cumpriu nessa altura, menino. Depois, umas semanas depois, quando voltou a dar as caras por Foz de Zimbrais, os guardas apanharam-na outra vez e levaram-na para uma das celas do posto. Com a concordância do juiz, lá voltaram a arranjar a papelada toda, mesmo desde o princípio, e pronto, ficaram as coisas decididas. A velha Luzia dos Engreneiros teve de conformar-se com a determinação do destino, que era cumprir o resto da pena.
- Sim?!
- Sim, menino, e a coisa ainda chegava para aí a uns quinze dias, mesmo sem ter agravamentos por causa da fuga.
- ...
- Mas o que é certo, menino, é que a velha Luzia dos Engreneiros saiu ainda antes de completar uma semana, por bom comportamento.

(…)

Sem comentários: