sexta-feira, 18 de maio de 2007

Uma espécie de prefácio

Bom, para o livro de capa verde da imagem de um dos posts de dia 15 («A Mulher que Fazia Recados às Putas e Mais Contos Perversos») o Luís Graça, o autor, pediu-me para escrever um prefácio. Não consegui, de forma que tentei fazer uma coisa o mais parecida possível. Não sou tão bom como ele, nem tão rápido, nisto de escrever. O Luís disse-me que me pedia o prefácio por causa de eu ter gostado muito de um primeiro livro de contos que publicou («O Homem que Casou com Uma Estrela ‘Porno’ & Outros Contos Perversos», Edições Polvo, 2003). A verdade é que gostei muito do livro. Para mim, foi um dos livros portugueses desse ano na ficção, mas pouca gente lhe acertou, ou lhe conseguiu acertar. Foi também o ano de um grande romance de Mário de Carvalho («Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina»). Eu também publiquei um romance nesse ano, mas isso agora, como dizia a outra, ou o outro, nem sei ao certo, não interessa nada. Deixo a seguir o que escrevi para o novo livro de contos do Luís.

A sombra dos dedos
– Uma coisa tipo prefácio

Eu nunca disse isto ao Luís, e também nunca falei a outras pessoas, mas de cada vez que leio uma história dele lembro-me do Lucky Luke. O Luís, acho eu – porque nunca o vi a escrever –, deve escrever mais rápido do que a própria sombra. A dos dedos, já se vê, não a sombra toda. Imagino-o pela noite fora – ou pela noite dentro, nem sei –, à luz de um pequeno candeeiro, a escrever, sempre escrever, lançadíssimo, e a sombra dos dedos, a sombra parcial de cada um, toda aflita a tentar acompanhar o próprio dedo, a tentar ir a cada tecla que é tocada. No meu caso, sei muito bem, a sombra chega à tecla uns milésimos de segundo antes, percebo que a tecla fica mais escura e que só depois é que o dedo a toca. Mas com o Luís só consigo imaginar que a tecla, cada tecla, não muda de tom; o que muda, se calhar, é o dedo, ou antes, a unha. O Luís, a escrever, carrega na tecla, em cada tecla, e só depois é que lá chega a sombra, toda esbaforida, e decepcionada, ofegante, confusa, provavelmente muito confusa, porque em vez da tecla, de cada tecla, o que consegue escurecer é a própria unha do dedo que lhe terá dado origem. O Luís, pode dizer-se, pelo menos eu acho, é um escritor despachado.
Uma vez, melhor, um dia, pedi-lhe uma história para uma revista. Um conto. Pedi-lhe ao fim da tarde. Telefonei-lhe e pedi. O Luís nem disse que sim nem que não, disse apenas qualquer coisa como não valer a pena preocupar-me. No outro dia de manhã eu tinha a história na minha caixa de correio electrónico, enviada algures durante a madrugada. Uma história de formigas, cuja narradora – uma formiga, obviamente – dizia muitas vezes «a malta anda por todo o lado», quase tantas vezes como um conhecido treinador de futebol diz «na realidade» ou um desconhecido colega de um trabalho que tive no século passado dizia (se calhar ainda diz), «por conseguinte». Eu já suspeitava do Luís nessa altura, mas aí tirei a prova. Quando abri o ficheiro com a história e li o que lá estava escrito, chegou-me logo a ideia de que ele escrevia mesmo mais rápido do que a própria sombra. E de que aquilo de a sombra de cada dedo em vez de chegar às teclas chegar, afinal, à própria unha era uma fortíssima possibilidade.
Ou seja, o Luís escreve sem avisar a sombra. Primeiro carrega na tecla e depois… Bom, podia pensar-se que depois perguntava qualquer coisa, mas nem isso. Nada, depois já está na tecla seguinte, sempre em frente, sempre em frente, e a sombra, aflitíssima, a atingir-lhe cada unha sem nunca chegar às teclas. Um dia, receio, o Luís poderá perder a sombra, talvez não a sombra toda, mas a de alguns dedos, se é que não os usa todos para escrever. Talvez se safe a dos polegares, que ele não deve usar para escrever, ou então usa menos vezes. A sombra, sempre naquelas aflições de acompanhar-lhe a velocidade da escrita, um dia ou dá-lhe qualquer coisa ou foge nem sei para onde; a parte dos dedos mais usados na escrita, o resto não, o resto é bem capaz de ficar.
Estranhamente, com estas velocidades todas metidas nos dedos, o Luís sai-se invariavelmente bem. Sei do que falo, sei bem o que me sai quando é preciso escrever a correr; gralhas e mais gralhas, e o pior, as coisas sem sentido que depois me deixam completamente espantado. Nem a sombra chega antes dos dedos às teclas, por mais que ela acelere, nem as coisas me saem bem. Com o Luís não, não tenho essa ideia. Ele escreve mais rápido do que a própria sombra e mesmo assim sai-se bem. Não sei se no final sopra os dedos; aliás, duvido de que o faça. Se escrevesse à luz da vela, no final talvez soprasse a pequena chama que tinha estado a iluminar-lhe a escrita. Mas eu não o imagino a escrever à luz da vela; imagino-o, como disse, com um pequeno candeeiro ao lado, também ele a iluminar-lhe a escrita. Se calhar, no fim de cada texto, o Luís nem sopra, ou melhor, nem assopra, como por vezes se diz. Aliás, o próprio Lucky Luke, do que me recordo – e aviso de que não conheço os álbuns todos –, também não soprava no fim dos tiroteios. Lembro-me dele sempre de cigarro na boca; como poderia assim soprar o fumo que lhe saía do cano do revólver. Talvez o Luís fume um cigarro depois de escrever.

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