sábado, 5 de maio de 2007

Sobre árvores cortadas II

Noutro dos meus livros, também um de contos, mais uma árvore cortada, ou melhor, várias árvores (conto «Uma Mulher à Espera», do livro de 2005 «O Amor por entre os Dedos»). Um excerto…
(…)
Claro que a mulher só lamuriava de vez em quando, principalmente ao fim da tarde, quando os pardais começavam a amalhar-se nas árvores do largo da câmara. Aliás, um dos assessores do presidente...
- Pois, o tal que na cerimónia confirmou a justeza do preto para o busto do rapazito, que tem a mania de que é um grande escritor.
... o assessor de maior graduação, segundo se opinava nos corredores municipais quando tocava a falar de aguardente de medronho, que era o produto tradicional da terra. Ou melhor, da serra, porque além de Santo Estêvão havia mais terras produtoras por toda a serra. Esse assessor entregou um relatório ao presidente da câmara em que defendia que o grasnar...
- Você escreveu grasnar no relatório?!
- Sim, senhor presidente.
- Ó doutor, grasnar?! Num relatório dos meus serviços?!
- Bem, senhor presidente, é realmente um relatório desses, sem dúvida, mas como parece tratar-se de uma acção de protesto, já se sabe, tem uma componente política marcante…
- E daí o grasnar?!
- Sim, senhor presidente.
O que o assessor defendia era que o grasnar da mulher, ou lá o que fosse que ela fazia...
- Doutor, desculpe estar a telefonar-lhe quase de cinco em cinco minutos.
- Diga, senhor presidente!
- O senhor refere aqui, na página cinco do relatório, e passo a ler, «o grasnar, ou lá o que é aquilo que a amaldiçoada faz».
- Exactamente, senhor presidente.
- Quer dizer que não há certezas?!
- De facto, não há.
Bem, mas o que o assessor defendia era que a mulher grasnava, «ou lá o que é aquilo», por causa dos pardais. Outros diziam, como se viu, que ela lamuriava.
- Bom, grasnar ou lamuriar...
Depois de uma quebra, continua assim…
Ora, o presidente da câmara nem pensou duas vezes. Mandou cortar todas as árvores do largo.
- Também, já eram velhas!...
- Velhas é favor, senhor presidente.
- Podia ter mandado matar os pardais, mas eram muitos e ainda por cima bem manhosos, capazes de se esconderem em menos de nada...
(…)

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