terça-feira, 17 de abril de 2007

Textos sobre livros – 23

O massacre na Universidade Técnica da Virgínia (Estados Unidos) traz-me à memória um outro, o da Columbine High School, em Littleton, também nos Estados Unidos (no estado do Colorado). Esse massacre, que ocorreu em 1999, inspirou um livro de leitura penosa sobre o qual uma vez me pediram para escrever. Aqui fica o texto, em que evitei dizer mal, porque se tratava apenas de uma divulgação; mas o livro, que inclusive ganhou o «Booker Prize», era (é) mesmo mau.

Livro: «O Bode Expiatório», de DBC Pierre (Gradiva, 286 pp.)

Tantas vezes, na América...

Falou-se muito e mais ainda se escreveu sobre o «Booker Prize» de 2003 [texto escrito em 2004]. Lendo a tradução portuguesa, consegue-se perceber as razões. E lendo sobre o autor melhor ainda se percebe. DBC Pierre podia perfeitamente passear-se pelas páginas de «O Bode Expiatório». Passear-se, quer dizer, andar numa lufa-lufa.
Era uma vez, na América, um rapaz, como tantas vezes acontece na América. Vernon Gregory Little anda desorientado. Jesus, o seu melhor amigo, passou-se dos carretos – isto para utilizar expressão próxima do que aparece página após página. Jesus passou-se dos carretos e o que aconteceu foi um autêntico massacre na escola. Não faltam por isso cadáveres em Martirio, a pequena cidade texana onde decorre a acção, conhecida pelo seu molho de churrasco, que DBC Pierre não se escusa de apresentar sob a forma de nódoas na roupa de uma mulher-polícia a quem o companheiro deu um mês de prazo para emagrecer. Nem o cadáver de Jesus falta em Martirio.
Ora, com Jesus morto, quem começa a ser interrogado pela polícia é Vernon. Parece que é mesmo preciso encontrar um bode expiatório para a tragédia de Martirio. Vernon anda num corrupio na esquadra da polícia, é levado à presença de uma juíza e acaba por ficar em prisão preventiva. De volta à presença da juíza, o veredicto é «tratamento ambulatório», que o rapaz terá de cumprir escrupulosamente para não ser imediatamente detido. Outras ideias, no entanto, povoam a sua mente desembaraçada: o México e a bela Taylor Figueroa, que uma noite lhe tinha pedido ajuda para tirar as calças, a ver se respirava melhor.
A saga de Vernon Little, o bode expiatório de Martirio, não é mais do que um pretexto para DBC Pierre pintar à sua maneira uma América que a cada dia que passa não deixa alternativas a quem a quer pintar. Problema para DBC Pierre? Nem por isso. O novo romancista – estreou-se precisamente com este «bode expiatório» –, que carrega de baptismo o nome Peter Finlay (em pequeno, os amigos chamavam-lhe «Dirty Pierre», alcunha que ele logo compôs para DBC – «Dirty But Clean» – Pierre), o novo romancista, dizia, tem numa América completamente desmiolada o cenário ideal para se divertir a contar uma história talhada para divertir milhões de leitores por todo o mundo. E talhada para fazer reflectir sobre um país jovem de duzentos anos e picos mas com tantas ou mais doenças do que países bem mais velhinhos.
Nascido na Austrália há 42 anos [agora já é preciso somar mais uns três ou quatro], com uma passagem pelo México e depois a fixar-se na Irlanda, DBC Pierre foi encontrar numa aventura norte-americana a solução para muitas das suas ralações. O prémio e o que se lhe seguiu garantiram o pagamento das dívidas (diz-se que até a casa de um amigo tinha vendido) e a fama, mas talvez não garantam o lugar de médico particular de um «Uncle Sam» para o qual não é nada meigo no que diz respeito a diagnósticos preliminares.
O júri do «Booker Prize» demorou apenas uma hora para decidir-se pela consagração de DBC Pierre. Houve quem dissesse que o fizeram por pena dele. Mas será que não foi por pena da América?

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