quarta-feira, 11 de abril de 2007

Silêncios indecentes

Estive a ver na «SIC Notícias» um debate intitulado «O Silêncio de Sócrates». Fiquei na mesma. Sócrates, provavelmente, também terá ficado na mesma. O resto dos portugueses, se calhar, também. Sócrates fala amanhã (à hora a que escrevo já é hoje), por isso era o derradeiro dia para fazer um programa sobre o seu silêncio. Não sei o que vai dizer amanhã (hoje), nem o que lhe vão perguntar. Se passaram o dia a treinar ou não, se acertaram perguntas e respostas. Do que tenho lido e ouvido a situação é muito esquisita, mas quase que aposto que Sócrates não vai esclarecer nada e que se calhar em menos de uma semana lhe arranjam outro perfil tipo aquele manhoso do «Sol» há umas semanas.
O caso de Sócrates e da sua licenciatura esquisita lembra-me uma situação a que assisti na altura em que estava a acabar o meu curso (Gestão de Empresas, ISCTE, 1986/ 1991). Fui à inspecção militar, a Setúbal. Uma seca. Mesmo uma grande seca. Teve, no entanto, uma coisa que a mim e a muitos dos que lá estavam pareceu estranha, e que ficou sempre em silêncio; a presença do filho do primeiro-ministro (o da altura, já se vê, o que agora é presidente). Para contar o que aconteceu, socorro-me de um artigo que escrevi em Maio de 1999, a propósito da participação portuguesa em operações da NATO nos Balcãs. O artigo chamava-se «A Guerra das Inspecções» e dizia assim…
Ainda não há muito tempo, uma senhora falou-me do medo que sentia por causa de o filho estar quase a ir à inspecção militar. E tudo devido à guerra nos Balcãs, ao envolvimento de Portugal nas operações da NATO e ao perigo que uma guerra de maiores proporções, quem sabe uma Terceira Guerra Mundial, poderia representar para ele, se viesse a ser incorporado. Procurei tranquilizá-la, dizendo-lhe que as coisas não eram bem assim, que quem participava no conflito, pelas tropas portuguesas, eram elementos de unidades especiais e não jovens acabados de incorporar e sem nenhuma preparação. E mesmo aqueles elementos estavam apenas em missões de apoio, porque a verdade é que Portugal não dispõe de tecnologia militar suficientemente avançada para entrar directamente numa situação como a que então se estava a viver na Europa de Leste.
O que não pude foi deixar de pensar na perspectiva de uma generalização do conflito, no que uma guerra na Europa, ou uma guerra a nível mundial, poderia fazer acontecer ao jovem. Aí de certeza que já não seriam só as unidades especiais a participar, e nem as missões haveriam de ser apenas de apoio. Seria ele, jovem incorporado, e se calhar seriam também os que já cumpriram as obrigações militares. Não pude deixar de pensar também em mim, e noutros como eu, e até em pessoas mais velhas. Pode dizer-se que é um exagero, um alarmismo, que a Rússia morre de fome se não for o apoio do Ocidente e que por isso protesta, protesta, mas de concreto nunca tomará posições de hostilidade em relação à NATO. Pode até dizer-se que a China considerará uma coisa de bárbaros que lhe tenham mandado pelos ares, ao que parece por engano, a sua representação diplomática em Belgrado. Pode dizer-se tudo. Mas uma coisa é certa, também pode dizer-se que um belo (?) dia, ou uma bela (?) noite, porque a moda agora parece ser atacar de noite, pela calada, uma bela (?) noite, então, um maluco qualquer ainda é capaz de fazer alguma que depois ninguém há-de saber como parar. E aí, velhos ou novos, incorporados ou por incorporar, quem sabe se não iremos lá todos.
Quando fui à inspecção militar, há uns oito anos, também me falaram na questão da incorporação, sobretudo por causa da Guerra do Golfo. Mas aí o conflito era mais longe e Portugal nem sequer entrava, ou entrava apenas através de algumas medidas facilitadoras, nomeadamente ao nível do espaço aéreo e de instalações militares. Tanto que na altura a minha preocupação não foi com a guerra, mas sim com a própria incorporação. E tinha razões para isso, pois o que é certo é que com as confusões para cá e para lá, até que ficasse tudo resolvido ainda haveria de passar quase dois anos. Com todos os custos que isso implicou para a minha vida pessoal, e também para a profissional, que estava então a começar. O dia da inspecção representou, para mim, o início de um longo período de indefinições, até de muitas irritações, mas não a preocupação que há umas semanas me vieram colocar, tendo presente a tragédia dos Balcãs.
Foi um dia perdido, a ver situações parvas e até humilhantes para meia dúzia de desgraçados. Um porque tinha trinta e sete quilos e porque pela cor da pele e pela fisionomia parecia ser indiano, outro porque era preto («Você é de África?» ouvi um idiota não sei de que patente perguntar-lhe), outro porque pesava de certeza mais de cento e cinquenta quilos, outros porque tinham só a quarta classe e outros ainda porque nem isso tinham. Naquele dia quase tudo se distinguiu, até o filho de um político da primeira linha da altura (primeira mesmo primeira, porque chefiava o governo), que também lá tinha aterrado, embora sem ser de pára-quedas. Teve chamada especial, com o apregoador de serviço (não sei de que patente, não sei se idiota) a mudar o tom de voz e a fazer uns sinais que toda a gente compreendeu, e foi mandado embora quando batiam as onze da manhã. Como o que parecia indiano e pesava trinta e sete quilos e o outro de mais de cento e cinquenta, também ele não servia para aquela vida. Outras melhores, por certo, o aguardavam.

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