quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Textos sobre livros - 6

Um romance fabuloso que me ofereceram no Natal de 2003. O texto é do início de 2004.

Livro: «Bebendo o Mar», de Xavier Queipo (Deriva Editores, 198 pp.)

Ensaio para a cegueira

Francis, um galego que vive na Califórnia, compromete-se a traduzir o último romance de um português a quem, «com toda a certeza», vão atribuir o Prémio Nobel de Literatura. Trata-se de «um tal Saramago». Francis acaba de saber que ficará cego em seis meses.

Há poucos anos, um crítico escreveu sobre o primeiro livro de Saramago, apresentando as frases inicias, que «depois de um começo assim não há livro que se aguente». «Bebendo o Mar», do galego Xavier Queipo, trazido para Portugal pela «jovem» Deriva Editores, começa da seguinte forma. «Conheceram-se no cinema. Numa sala enorme, dessas que já quase não existem. Era a reposição de ‘Apocalipse Now’, a emocionante parábola de Coppola, baseada no ‘Coração das Trevas’ de Conrad. Na cena dos helicópteros avançando sobre os vietcongs ao som de Wagner, a sala encheu-se de luz e explosões de napalm. Foi ao primeiro olhar, quando as sombras deram lugar à luz. Foi então que ela disse, automática e sinceramente, com aquela segurança estóica das mulheres que se sabem fazedoras de sonhos:/ - Deixa-me dar-te a mão. Sinto um não sei quê desconfortável./ Está bem. Não te preocupes. Vou ficar aqui até ao fim do filme - respondeu Francis com uma segurança recém adquirida.»
Foi assim o meu primeiro contacto com o escritor galego (n. Santiago de Compostela, 1959). Não pensei naquele começo, se um livro depois dele se «aguentaria» ou não, o que recordo apenas é que avancei pela leitura como se estivesse a ouvir o próprio autor a contar a história de Francis. Não posso fazer maior elogio. A leitura de «Bebendo o Mar» como que me envolveu num ambiente mágico, um ambiente do qual a pouco e pouco começava a ficar com pena de ter de vir a sair mais cedo ou mais tarde, assim que lesse a última frase. E sempre a pensar que naquele autor eu confiava, assim, a contar as coisas daquela maneira, tranquilamente, com fluência, como se escrever para ele não fosse - não seja - muito diferente de respirar; assim, pensava eu, ele há-de segurar até ao fim o ambiente de magia.
Francis, o tradutor galego que conhece Rose no cinema quando inesperadamente ela lhe pede para darem as mãos, mergulha na obra de Saramago para traduzir «Ensaio Sobre a Cegueira», então o último romance do «tal» escritor português muito falado para o Prémio Nobel de Literatura. Tinha acabado de descobrir, depois de um exame médico de rotina, um problema nos olhos. «Daqui a seis meses estará completamente cego. Sem cura. É a única coisa que lhe posso dizer. Sem cura conhecida.» São as palavras do médico, que fazem Francis pensar numa «condenação pura, de gume de navalha de barbeiro, de dissecação e rotura, de relâmpago frio». E a «parábola» de Saramago para traduzir, uma «parábola milenarista de desestruturação da sociedade e de ausência de esperanças». E Francis com esperanças, a princípio, «as dúvidas sobre o diagnóstico, reforçadas, obviamente, pela ausência de um quadro sintomático sério e pelo receio de acreditar nos médicos como xamãs de uma cultura alheia e reacionária, e sobretudo no que se diz, linguagem mágica e hermética, afastada da realidade». E depois a realidade, os sintomas, a tradução do «ensaio» de Saramago... «Fumou um cigarro, olhando a praia. As ondas. O mar imenso. Os chafarizes das baleias de bossas erguendo-se imponentes a duas marcas da costa. Os surfistas. O sol brincando atrás de umas nuvens improváveis com aquele tempo, com aquele calor abafante, com aquele vento. Umas nuvens irreais, de miragem ou de maremoto interno. As ondas.» É uma praia da Califórnia, é outro mar que não aquele que banha a Galiza. Mas Francis ainda conseguirá ver também o da sua terra natal. Mais do que isso, bem mais.

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